domingo, 8 de março de 2020

Desvendando a Cordilheira dos Andes





Difícil explicar a decisão por uma cicloviagem sozinho em um lugar de natureza inóspita como a Cordilheira dos Andes. Montanha acima, ar abaixo, sabia que seguiria por dezenas de quilômetros sem cruzar uma alma viva e, ainda assim, as incertezas sucumbiram à intuitiva escolha de também seguir para dentro de mim. O tal caminho interior, trajetória comum de religiões e filosofias.

O trecho escolhido percorria 500 km por isolados caminhos de terra no coração dos andes peruanos, seguindo o sul da região da Cordilheira Blanca até a Carretera Central. Apesar do ganho total de elevação de 12.000 m, entre altitudes de 3.500 m e 5.000 m, decidi topar a encrenca. Quando dei por mim, já pedalava pelo entorno do Lago Conococha, início da viagem.

Impossível descrever, em palavras, a magnitude das paisagens. Lagos azuis, picos nevados, vales pitorescos e cachoeiras despontavam, a cada curva, como quadros emoldurados. A sutileza da bicicleta permitia uma integração absoluta com o ambiente, agigantando minúcias outrora despercebidas.

Na vastidão deste remanso, passei a ouvir vozes. Tímidas, de baixo tom. Convidavam-me para entrar, abrigavam-me. E meu interior, descalço, caminhou por outros interiores. Foi assim na comunidade Pacocha, uma porta aberta antes que eu encontrasse um espaço para estender o saco de dormir. Sonho alimentado de sopa, milho e conversa mansa.

Entre tantas descobertas, a receptividade do povo peruano foi a mais grata delas. No primeiro dia, após dezenas de quilômetros pedalados e ansioso para o primeiro encontro com os serranos, como é conhecido o povo das montanhas, avistei o vilarejo de Ticlos. Apreensivo pela reação dos moradores à presença do estranho com alforjes e barraca pendurados numa bicicleta, deparei-me com um campo de futebol repleto de crianças. Parei e um instante de silêncio precedeu ao grito do zagueiro magrelo – “Gringo, ven a jugar”! Não marquei gol, mas, sem dúvida, foi uma pelada memorável. Ao final, cercado por eles, segui para o refeitório do colégio, onde me ofereceram comida e cama.

As boas-vindas do pequeno povoado criaram em mim uma intimidade que perdurou pela travessia. Além da ancestralidade indígena, aquelas pessoas carregavam uma aura latina que aflorava, entre nós, uma afinidade nos detalhes mais ocultos. Um déja vu do sertão de Minas Gerais na mão calejada do lavrador ou no olhar tímido da elegante senhora de chapéu florido.

Num certo dia, há tantos outros sem um banho, subia obstinado uma ladeira infindável a Cajatambo, vilarejo onde havia uma hospedagem com chuveiro quente, objeto raro por aquelas bandas, mas, a 25 km do destino, o crepúsculo me forçou a parar. Frustrado, procurava um local apropriado para acampar e uma van se aproximou. Um veículo no meio do nada, naquela situação, só podia ser sinal do além e sucumbi à maior das heresias para um cicloturista ortodoxo: carona! Bike amarrada no teto, bagagem no colo, adulto, velho, criança, nunca imaginei caber tanta gente num espaço tão pequeno. A graça logo acabou quando, pela janela, vi o abismo que margeava a estrada, perspectiva que me faltava da bicicleta. Após duas horas, muitas paradas e um pneu furado, havíamos percorrido apenas 18 km e novidade: o motorista orientou-me a descer, pois seguiriam por outra rota. A pedalada noturna, que, a princípio, me causou receio, foi um dos pontos altos da viagem. Iluminado pelas estrelas, pedalei por uma hora até o melhor banho da minha vida.

Outra surpresa, um pouco menos agradável, foi o clima. Quando o sol se punha por detrás das montanhas, a temperatura desabava até abaixo de zero. Descobri, após duas noites praticamente em claro, que a barraca e o saco de dormir eram impróprios para tanto frio e, adiante, tive que me adaptar para sempre pernoitar em vilarejos. Além do chuveiro, outra escassez foram os trechos planos. Numa montanha-russa infindável, acumulei mais de 200 km de downhill pelos Andes, em que, louco e concentrado, bailava Cordilheira abaixo entre lhamas e vicunhas.

Apesar de não me enquadrar no perfil esportista, o elemento altitude trouxe um viés de desafio à viagem. A escassez de oxigênio tornava o trajeto acima de 4.500 m uma via crucis. Eram horas de pedalada para subir lentamente, alternando paradoxos, físico e psicológico, ao cume de cada passo. Para o Chucompama, o mais difícil deles, demorei cinco horas nos últimos 20 km de pedalada. Ali, com o infinito sobre os olhos e a Cordilheira sob os pés, uma brisa sussurrou sobre toda minha insignificância e levou consigo um sorriso que, até hoje, vaga por aquela imensidão.






































terça-feira, 29 de janeiro de 2019

VALE de Sombras





Na era da mídia social, preciosos os refúgios que nos permitem usufruir o silêncio. Em lótus, num templo religioso ou fitando o além, as pessoas descobrem a importância de se colocarem estáticas. Em mim, a presentificação aflora pelo simples contato com a natureza.

Um desses esconderijos é o mirante da Serra da Calçada, em Brumadinho, que nem sei se é digno do status pelas dezenas de ciclistas que por lá passam nos finais de semana. Mas é quando a tarde cai que ele se isola. Talvez buscando a própria presentificação, por vezes interrompida pela minha figura solitária. Ficamos os dois ali, com a intimidade de bons amigos que aproveitam o silêncio juntos.

Pela proximidade de casa, vemo-nos com certa frequência. Vinte e cinco minutos é o tempo entre colocar a bike no carro, em Belo Horizonte, e as primeiras pedaladas na trilha que leva ao nosso encontro. O penúltimo deles se deu no último pôr-do-sol de 2018. Com o céu mais belo que nunca, sob os pés da Serra, o vale do Rio Paraopeba reinava encantado.

O mineiro da planície do Rio Doce tomou gosto pelas alturas. Quem escuta o canto da sereia da montanha, diz o poeta, não mais se livra do feitiço.

Vinte e seis dias do brinde, o mundo assiste atônito a mais uma catástrofe ambiental. Como se homem e natureza fossem dissociáveis, alguém interpela: o “desastre é humanitário”. Desconecto a semântica e plugo o smartphone. Vídeos, notícias e indignação, os grupos de WhatsApp borbulham.

Bateau Mouche, Boate Kiss, Mariana, mais uma tragédia no país do futebol, privilégios e impunidade. Entre outras ocultas impostas ao cotidiano de uma massa de sobreviventes. Palavras têm sido ditas. E repetidas. Em tempos cibernéticos: compartilhadas. Aguardemos, ao menos de pé, as ações e punições que nunca virão.

A algazarra de perplexidade emudece. O silêncio da sirene ensurdece.

Bicicleta na trilha, hora de atender ao chamado da montanha. No mirante travestido de memorial, não sei se buscava consolo ou consolar. A Serra não me deu respostas. Na bruma branca, guardou para si o sol daquele fim de tarde cinza. E de outras centenas de astros que naquele horizonte se puseram para nunca mais brilhar.






sexta-feira, 3 de agosto de 2018

Em linha reta








Em linha reta


Rua Barão do Rio Branco, Governador Valadares. Não sei quantos anos tinha aquele menino, nem se seria azul o vermelho descascado do quadro que brilha vivo em minha memória. Alguém segurava a garupa. Lembro disso, havia uma garupa. A precoce, tão pequena, ostentava uma garupa. Ou seria uma senhora? E uma mão, que de repente não existia mais. O menino seguia em linha reta, não sabia virar. Mas seguia, com a autoridade de quem andava de bicicleta.

Décadas de desencontros, qual não foi minha surpresa quando, de novo, avistei esse menino. Descia com a bike pelo monte esburacado e o faceiro, em disparada, passou por mim. Chamei, mas nem virou o rosto.

Desde então, vemo-nos com frequência. Presença certa nas trilhas do Espinhaço, não é adepto de combinações pelas mídias sociais, nem WhatsApp tem. É de supetão que emerge em acrobacias em mim. Diverte-se com nosso temor da nuvem preta com cara de dragão e, no temporal, se agiganta. No barro, nem parece um menino. Parece vários.

É intransigente. Num certo dia, ignorei o apelo para um pulo na cachoeira. Ficou magoado, desapareceu. “Onde está você, menino”?, murmurava eu por vales e serras. Meses de pedaladas em preto e branco, e, na mesma queda d´água, ele me acenou de longe. Teria ficado por lá todo esse tempo? Menino danado! Na dúvida, não desobedeço mais. Pediu para nadar, nademos.

De um tempo para cá, passei a carrega-lo pela cidade. Pareceu não gostar tanto. Reclamou que tudo é cinza, bradou palavras como caos urbano, falta de mobilidade, que nem sei onde aprendeu. Mas, no fundo, diverte-se também. Só não dá o braço a torcer, coisa de menino. Adiante, salto do meio-fio, tiro as mãos do guidom e adivinhe quem se desperta em gargalhadas?

Era uma quinta-feira. Na janela do ônibus, alguém observava a bicicleta trancada na árvore defronte à centenária galeria. No sebo, uma frase quebrava as amarras da página encardida que um dia já foi árvore. Escrita pela poeta dinamarquesa de nome difícil, Tove Ditlevsen, a sentença tomava-me de assalto: “existe em mim uma menina que se recusa a morrer”. Com o livreto em uma das mãos, respirei fundo. A ausência de certeza, fonte eterna de segurança, me pregou a peça: e se o menino um dia partisse de vez?

A interrogação perambulava por minha cabeça. Fiz de desentendido, mas ele, vivo como só, encurralou-me.

- O assunto não é de menino – desviei.

Não adiantou. Sucumbi à pirraça e abri meu coração. Contei da alegria de sentir aquela criança renascer em mim a cada jornada de bicicleta. E do receio de que, um dia, partisse sem dizer adeus. O menino riu e seguiu em frente. Pedalei atrás. Em linha reta, sem saber virar.





* Crônica publicada originalmente na Revista Bicicleta. 

quinta-feira, 1 de junho de 2017

Leviatã de alpargatas

Leviatã de alpargatas

Criatura monstruosa de origem bíblica, o Leviatã ocupou o imaginário popular dos navegantes da Idade Média. Inúmeros os relatos dos que cruzaram o temido monstro que naufragava navios oceano afora. Nas palavras de Jó (41:18-22): “da sua boca saem tochas; faíscas de fogo saltam dela. Das suas narinas procede fumaça, como de uma panela fervente. O seu hálito faz incender os carvões. Diante dele até a tristeza salta de prazer”.

Em 1651, Leviatã deu nome à mais conhecia obra de Hobbes, na qual o humano é apontado como um completo egoísta, que, juiz de si mesmo, ignora o interesse coletivo na busca da própria satisfação: “o homem é o lobo do homem”. Para o filósofo inglês, somente uma autoridade maior, centralizada, capaz de regular e punir os indivíduos desobedientes ao Pacto Social traria a paz social. Para esta temida figura, Hobbes valeu-se da metáfora do Leviatã, também conhecida pelos botecos do mundo pela alcunha de Estado.

Passados 363 anos, homônimo filme russo, dirigido por Andrey Zvyagintsev, retratou o tema na ótica da Rússia pós-soviética. Dotado de uma envergadura de dar inveja aos ancestrais medievais, o Leviatã contemporâneo desfila com músculos torneados pela corrupção e burocracia das instituições. Até que um pai de família, Kolya, desafia a criatura para não se ver despejado da própria terra por um prefeito mal intencionado. Não é preciso dizer o resultado da inglória batalha, nem que a obra-prima, reverenciada nos mais importante festivais, foi censurada e tachada de “antirrussa” pelas autoridades do país. Leviatã versus Leviatã.

Por aqui, nossa versão tupiniquim não é menos assombrosa. Enorme, com tentáculos continentais, quase onipresente. Às vezes me pergunto se a criatura, inebriada e maligna, é digna do nome. A comparação parece injusta com o mito bíblico cuspidor de tochas. Nosso monstrengo, que agasalha 54 mil autoridades com foro privilegiado e esmaga, como baratas, milhões de miseráveis, é mais diabólico. Talvez se assemelhe a um Cavalo de Tróia, cujos mercenários, tal qual numa trama kafkiana, um dia o abandonarão para nos aniquilar numa noite de sono.

Desperto do pesadelo e a figura sombria do Leviatã é substituída pelo semblante de Gilmar Mendes no portal de notícias. O ministro, já interceptado pela Polícia Federal em ligações telefônicas com políticos indiciados, dessa vez promete rever o posicionamento sobre a prisão a partir da condenação em 2ª instância.

O tema, despercebido por alguns, é o alicerce básico para a construção de um país mais decente. Gilmar, antes efusivo defensor da medida, promete acompanhar Toffoli e Lewandowski para reverter a maioria anterior do plenário e fazer prevalecer o entendimento de que um réu apenas cumpra a pena após a condenação instâncias superiores em Brasília. Estamos falando de décadas de tramitação e prescrição da maioria das penas. No caso do ex-senador Luiz Estevão, lá se vão 24 anos sem a finalização do processo. Para os indiciados de hoje: quem sabe 2.040?

Enquanto Leviatã dá cambalhotas de alegria, a súbita mudança do supremo jurista é justificada pela preocupação com “os réus pobres”. A coincidência temporal com o avanço da lava-jato contra os amigos Temer e Aécio é mero acaso. Com este, Gilmar foi grampeado pela Polícia Federal articulando a favor do criticado projeto de Lei de Abuso de Autoridade. Na companhia daquele, jantares não oficiais noites adentro pelo Palácio do Jaburu. Pelas mídias sociais, há quem diga que o gesto, mais que franciscano, é sobrenatural. Confirmaria o presságio de um profeta, de um passado recente, que um dia sussurrou sobre um grande acordo nacional para estancar a sangria, “com o Supremo, com tudo”. Coisa de Teoria da Conspiração.

O Ministro Joaquim Barbosa certa vez acusou Gilmar, em plenário, de “destruir a credibilidade do judiciário brasileiro”. A atriz Monica Iozzi foi além e o chamou de cúmplice por libertar Roger Abdelmassih, julgado por 58 estupros. Acabou condenada a pagar 30 mil por danos morais. Os adjetivos, um a um, desafiam essa caneta. Contenho-os. Falta-me o arrojo transbordado por dois brasileiros. Ou a bravura do russo fictício com o dedo em riste para o monstro malvado. Leviatã dá gargalhadas. Será que Hobbes descansa em paz?



Renato Perim







Manuscrito sagrado da Profecia:
MACHADO - O primeiro a ser comido vai ser o Aécio.
JUCÁ - Todos, porra. E vão pegando e vão..
MACHADO - O Aécio, rapaz... O Aécio não tem condição, a gente sabe disso. Quem que não sabe? Quem não conhece o esquema do Aécio? Eu, que participei de campanha do PSDB...
JUCÁ - É, a gente viveu tudo.
(...)
JUCÁ - Só o Renan que está contra essa porra. 'Porque não gosta do Michel, porque o Michel é Eduardo Cunha'. Gente, esquece o Eduardo Cunha, o Eduardo Cunha está morto, porra.
MACHADO - É um acordo, botar o Michel, num grande acordo nacional.
JUCÁ - Com o Supremo, com tudo.
MACHADO - Com tudo, aí parava tudo.
JUCÁ - É. Delimitava onde está, pronto







segunda-feira, 17 de abril de 2017

Pelos quintais da Holanda e Bélgica



Quem já viveu a experiência sabe que o relato de uma cicloviagem desperta fascínio e surpresa. Se uns veem a prática com admiração, outros acham que falta um parafuso na cabeça daqueles que cruzam fronteiras pedalando, sem onde e quando parar. Lembro-me da indagação de um tio, ao me receber num feriado em Cabo Frio: “não era mais fácil o mineiro vir para a praia de carro?”

Agora papai, a ideia de uma cicloviagem em família, levando na bagagem o pequeno Vitor, não foi recebida com menor sobressalto. Mas por que não conjugar brincar com pedalar e viajar?

Obviamente, um cicloviajante de três anos requer maior cuidado, trajetos diários menos longos e montanhosos, já que “o excesso de bagagem”, com toda a tralha, beira os quarenta quilos. Se os Andes não eram a bola da vez, as ciclovias da Holanda e Bélgica conciliavam as características ideais para o pedal: planas, seguras e com marcante cultura da bicicleta.

Partimos de Amsterdã, capital da Holanda, com destino a Bruges, cidade medieval belga. Pelo conforto do super-herói, providenciamos, além da cadeirinha na garupa, um trailer à traseira da bike, útil nas sonecas e frio.

É interessante como o mundo, na perspectiva do olhar da criança, é uma brincadeira. Numa magia lúdica, o toque da imaginação do Midas mirim fez da minha bicicleta o carro do Batman, do atalho num bosque uma caça ao lobo mau e dos muitos restaurantes, parques de diversão. O calor do pequeno tupiniquim coloria e enfeitiçava. A cada partida, mimos, abraços e suspiros.

Longe de casa, sentimos certa “mineirice” no povo da região, distinto de outros da Europa no quesito afeto. Em meio a paisagens bucólicas, fluxos de aves migratórias e moinhos, foram os acenos e sorrisos as paisagens que mais nos tocaram. Tato que não se vê no retrato.

Na máxima de “parar quando der vontade”, o acaso conspirou a favor da criança. Em Alphen Aan Den Rijn, um zoo de pássaros anexo ao hotel; em Lekkerkerk, hospedamos numa tradicional fazendinha holandesa e, na Antuérpia, a manhã foi entre tubarões e arraias no belo aquário da cidade.

A busca, em outros tempos, por remotos topos de montanhas, agora era para o espaço que melhor harmonizaria com um piquenique de morangos. Frescos e suculentos. Corações na palma da mão.

E desviando da pressa, o jovem super-herói imergiu conosco numa toada senhora, sem hora de parar ou partir. Quatrocentos e dez quilômetros em oito dias de travessia. E travessuras.


Bicicletas e mundos
Não sei bem o que é o mundo
Mamãe diz que é uma bola,
Papai, que roda
Saí para brincar de mundo
De Bola
E de roda
Roda de bicicleta
Pé de girassol
Que gira, pedala
Torna-me concha de caracol.



obs - texto originalmente publicado na Revista Bicicleta. 

sexta-feira, 22 de abril de 2016

Que tempos são estes?


Que tempos são estes?


No 17 de abril de 2016, quinhentos e onze parlamentares reuniram-se na Câmara dos Deputados e aprovaram a abertura do processo de impeachment contra a Presidente da República. De um lado, Dilma Rousseff, suas pedaladas fiscais, a crise econômica e denúncias de corrupção do atacado ao varejo. Do outro, novamente corrupção, uma mídia parcial e a sede de vingança da mais demoníaca figura política da atualidade. 

Legítimo processo constitucional? Golpe de Estado? O Facebook, de braços abertos, aguarda seu veredito, enquanto Michel Temer, com semblante de mordomo de filme terror, finge de desentendido. O fim da película revelará a culpa do personagem?

Fato é que domingo foi um show de horror. Seria o congresso imagem e semelhança da sociedade brasileira? Somos aquilo, eu e você? Ou são eles senhores edificando as teias para uma plebe escravizada, que financia, com o suor do trabalho, as benesses da realeza neste ciclo interminável de servidão e poder?

Espelho ou escravo, escandalizei-me. Com todos e tudo. Principalmente com a audácia do deputado Jair Bolsonaro de homenagear um torturador da ditadura militar. E o espanto me assaltou de vez ao ver pessoas de bem, amigos inclusive, defendendo o fato. 

- A causa era legítima. Aquilo era uma guerra, Renato. Se não fosse a ditadura, o socialismo estaria aí – é o que tenho ouvido.  

O argumento é ignóbil. Os socialistas não foram as únicas vítimas da sangrenta ditadura militar. Qualquer um que se opusesse ao regime, o mero apologista da democracia, estava sujeito ao pau de arara. E que mundo é este onde o cidadão não tem o direito de escolher o modelo econômico ou político que mais lhe agrada? Torturar alguém por ser socialista é uma barbárie. Nem os nazistas receberam esse tratamento em Nuremberg. Ou seria legítimo conceber, nos dias de hoje, o sumário assassinato de políticos que mantêm viés de esquerda? 

Até as mais belicosas batalhas têm suas regras. Quem ultrapassá-las merece o repúdio. Práticas como tortura, assassinato intencional e tratamento desumano foram definidas como crimes de guerra pela Convenção de Genebra em 1864 e agora, à luz do século XXI, indivíduos levantam a bandeira da ditadura que banalizou esses crimes. É isso mesmo? 

Bolsonaro é um Donald Trump piorado, um Le Pen tupiniquim. Entre outras atrocidades, disse preferir “um filho morto em acidente a um homossexual” e que “ter filho gay é falta de porrada.” Substitua as palavras “homossexual” e “gay” por “negro” e “judeu” e perceba a gravidade dessas frases. Sobretudo, imagine-se num lugar de um homoafetivo ouvindo isso. 

No Iraque, o jornalista Muntazer al Zaidi jogou um sapato em George Bush. O cuspe de um homossexual foi uma pena por demais branda para o nosso criminoso. Legítima defesa de uma minoria secularmente ridicularizada, das piadas de salão aos gritos de torcida. A verdadeira punição não virá pelo Conselho de Ética ou Judiciário, mas pela censura da coletividade contra um ser humano que dissemina o ódio e preconceito. 

A maturidade traz conhecimento e incertezas. Mas o paradoxo também cristaliza convicções. Em mim, uma delas é o inconformismo à ascensão de uma figura como Bolsonaro em pleno terceiro milênio. Com tanta poesia pelo mundo, não deveríamos sequer estar falando dele. Como bem colocou o dramaturgo alemão Bertholt Brecht, há mais de 50 anos: “Que tempos são estes, em que temos que defender o óbvio”?


Renato Perim





  

 



sexta-feira, 13 de novembro de 2015

O rio, o menino e a lama

O rio, o menino e a lama

Era um fim de tarde em Governador Valadares. Após horas de diversão no areal, a meninada pulou no rio. Aos quinze anos meu corpo debutava com a fartura das águas do Rio Doce.

Manoel de Barros faria do instante um poema de poucas palavras. Quanto a mim, guardo o momento como o encontro singular com um rio que nunca foi meu. E que então já era caçoado. “É sujo”, diziam.

Mas o rio, que parecia não guardar mágoas, retribuía a minha distância com o líquido que saciou a sede dos meus primeiros dezessete anos de vida. Quimicamente tratado, mas abundante. Se 3/4 do corpo humano é composto de água, o Rio Doce dominava-me. Se nunca foi meu, talvez eu fosse dele.

E, sem saber ao certo quem era de quem, certa vez o “rio sem menino” separou do “menino de rio”, que nem menino era mais. 

Esqueceram-se.

Até que um dia, num certo escritório da capital, entre telefonemas, relatórios e e-mails, o rio desaguou novamente em mim. Não veio em um banho refrescante, nem tratado num copo, mas na tela do computador. 

O Rio Doce virou manchete! Até a mídia internacional anunciava a lama que se apoderou do seu leito.

Nos vídeos, vi os peixes que na minha infância sonhei em pescar. Sufocados no barro, estavam todos lá: dourados, piaus e bagres. Uma tartaruga pedia passagem para a vida. Sem sucesso. Pelo telefone, papai mandou notícias: não podemos mais beber da água que te fez gente.

Como definir essa lama?

O dicionário a princípio se faz literal: “lama: mistura de terra, ou argila, e água”, mas logo se sensibiliza: “lama: homem fraco, sem energia”. E, como se me encurralasse, vai além: “tirar da lama: tirar da corrupção, dos vícios, da baixeza. Viver na lama: viver corrompidamente, na baixeza e nos vícios”.

Bingo, Michaelis!

Tal qual o menino que não se sentia dono do rio que o compunha, reconheçamos que a lama que escorre pelo leito é parte de nós, “homens fracos, sem energia”.

Além de pedras na mão, nossa passividade enquanto cidadãos também carrega a culpa pela tragédia ecológica. E por tantas outras tragédias cotidianas, mortes nas filas de hospitais, indigna educação da juventude e essa desigualdade sem fim.

Como cantou o rapper:

“Vamos as atividades do dia,
Lavar os copos, contar os corpos,
E sorrir,
A essa morna rebeldia”


Fruto da nossa cultura ou genética, a inaptidão do brasileiro para indignação é o passaporte para o caos. São 04 servidores para fiscalizar 736 barragens de Minas Gerais e 28.004 para sonambular nos corredores do Congresso Nacional, 70% deles comissionados.

E o que fazemos senão de assistir, inertes, a essa banalidade do absurdo que arruína nossa era?

Além de exigir a limpeza do rio e a punição dos responsáveis, é hora de darmos um passo adiante e sairmos dessa lama que impregna nossa sociedade.  

Talvez assim, os futuros netos do Vale do Rio Doce um dia possam ter e ser, em plenitude, um rio que hoje se mostra ferido pela nossa negligência.