Difícil explicar a decisão por uma
cicloviagem sozinho em um lugar de natureza inóspita como a Cordilheira dos
Andes. Montanha acima, ar abaixo, sabia que seguiria por dezenas de quilômetros
sem cruzar uma alma viva e, ainda assim, as incertezas sucumbiram à intuitiva
escolha de também seguir para dentro de mim. O tal caminho interior, trajetória
comum de religiões e filosofias.
O trecho escolhido percorria 500 km
por isolados caminhos de terra no coração dos andes peruanos, seguindo o sul da
região da Cordilheira Blanca até a Carretera Central. Apesar do ganho total de
elevação de 12.000 m, entre altitudes de 3.500 m e 5.000 m, decidi topar a
encrenca. Quando dei por mim, já pedalava pelo entorno do Lago Conococha,
início da viagem.
Impossível descrever, em palavras, a
magnitude das paisagens. Lagos azuis, picos nevados, vales pitorescos e
cachoeiras despontavam, a cada curva, como quadros emoldurados. A sutileza da
bicicleta permitia uma integração absoluta com o ambiente, agigantando minúcias
outrora despercebidas.
Na vastidão deste remanso, passei a
ouvir vozes. Tímidas, de baixo tom. Convidavam-me para entrar, abrigavam-me. E
meu interior, descalço, caminhou por outros interiores. Foi assim na comunidade
Pacocha, uma porta aberta antes que eu encontrasse um espaço para estender o
saco de dormir. Sonho alimentado de sopa, milho e conversa mansa.
Entre tantas descobertas, a
receptividade do povo peruano foi a mais grata delas. No primeiro dia, após
dezenas de quilômetros pedalados e ansioso para o primeiro encontro com os
serranos, como é conhecido o povo das montanhas, avistei o vilarejo de Ticlos.
Apreensivo pela reação dos moradores à presença do estranho com alforjes e
barraca pendurados numa bicicleta, deparei-me com um campo de futebol repleto
de crianças. Parei e um instante de silêncio precedeu ao grito do zagueiro
magrelo – “Gringo, ven a jugar”! Não marquei gol, mas, sem dúvida, foi uma
pelada memorável. Ao final, cercado por eles, segui para o refeitório do
colégio, onde me ofereceram comida e cama.
As boas-vindas do pequeno povoado
criaram em mim uma intimidade que perdurou pela travessia. Além da
ancestralidade indígena, aquelas pessoas carregavam uma aura latina que
aflorava, entre nós, uma afinidade nos detalhes mais ocultos. Um déja vu do
sertão de Minas Gerais na mão calejada do lavrador ou no olhar tímido da
elegante senhora de chapéu florido.
Num certo dia, há tantos outros sem
um banho, subia obstinado uma ladeira infindável a Cajatambo, vilarejo onde
havia uma hospedagem com chuveiro quente, objeto raro por aquelas bandas, mas,
a 25 km do destino, o crepúsculo me forçou a parar. Frustrado, procurava um
local apropriado para acampar e uma van se aproximou. Um veículo no meio do
nada, naquela situação, só podia ser sinal do além e sucumbi à maior das
heresias para um cicloturista ortodoxo: carona! Bike amarrada no teto, bagagem
no colo, adulto, velho, criança, nunca imaginei caber tanta gente num espaço
tão pequeno. A graça logo acabou quando, pela janela, vi o abismo que margeava
a estrada, perspectiva que me faltava da bicicleta. Após duas horas, muitas
paradas e um pneu furado, havíamos percorrido apenas 18 km e novidade: o
motorista orientou-me a descer, pois seguiriam por outra rota. A pedalada
noturna, que, a princípio, me causou receio, foi um dos pontos altos da viagem.
Iluminado pelas estrelas, pedalei por uma hora até o melhor banho da minha vida.
Outra surpresa, um pouco menos
agradável, foi o clima. Quando o sol se punha por detrás das montanhas, a temperatura
desabava até abaixo de zero. Descobri, após duas noites praticamente em claro,
que a barraca e o saco de dormir eram impróprios para tanto frio e, adiante,
tive que me adaptar para sempre pernoitar em vilarejos. Além do chuveiro, outra
escassez foram os trechos planos. Numa montanha-russa infindável, acumulei mais
de 200 km de downhill pelos Andes, em que, louco e concentrado, bailava
Cordilheira abaixo entre lhamas e vicunhas.
Apesar de não me enquadrar no perfil
esportista, o elemento altitude trouxe um viés de desafio à viagem. A escassez
de oxigênio tornava o trajeto acima de 4.500 m uma via crucis. Eram horas de
pedalada para subir lentamente, alternando paradoxos, físico e psicológico, ao
cume de cada passo. Para o Chucompama, o mais difícil deles, demorei cinco
horas nos últimos 20 km de pedalada. Ali, com o infinito sobre os olhos e a
Cordilheira sob os pés, uma brisa sussurrou sobre toda minha insignificância e
levou consigo um sorriso que, até hoje, vaga por aquela imensidão.